Volta por cima Uma geração de portadores de Down leva uma vida normal e derruba um preconceito secular
Como convém a um jovem de 27 anos, Luiz Felipe Badin procura ocupar sua rotina com as mais variadas atividades. Toca piano, pratica natação, estuda informática, trabalha como ator - participou recentemente da novela O mapa da mina -, escreve um livro e ainda usa o pouco tempo que resta para namorar. "Não suporto ficar parado", explica. Tanta efervescência pode surpreender a quem sabe que Badin é portador da síndrome de Down, uma anomalia cromossômica capaz de provocar diversos problemas congênitos e retardo mental. Até há pouco tempo, o que se esperava desse tipo de pessoa é que tivesse uma vida completamente dependente e inútil. Mas a progressiva melhoria no tratamento e na educação dos portadores da síndrome fez surgir uma nova geração atuante e determinada, que em nada lembra a legião de coitadinhos de tempos atrás.
A próxima façanha de Badin será a de estrelar uma campanha nacional de esclarecimento sobre a síndrome de Down, que deverá ir ao ar nos próximos dias em vários canais de televisão. O objetivo do trabalho é corrigir a visão equivocada sobre os portadores, que no País somam cerca de 300 mil. A mudança de comportamento é resultado da crescente evolução no trabalho de médicos, terapeutas e professores que atendem aos portadores. A medicina dispõe atualmente de informações suficientes para prescrever o tratamento ideal. Terapeutas e educadores têm em mente que o trabalho deve capacitar as pessoas para enfrentar o dia-a-dia da forma mais normal possível. Mas elogios especiais devem ser endereçados aos pais que não se conformaram em ver seus filhos alijados da vida produtiva. Odete Badin lembra muito bem quando, cinco dias após o nascimento de Luiz Felipe, ficou frente a frente com o pediatra. "O médico disse que meu filho era mongolóide e eu gastei todas as minhas lágrimas."
A participação dos pais mudou tudo no conceito - ou preconceito - que se tinha anteriormente sobre síndrome de Down, a começar pelo nome da deficiência.
O jornalista paulista Gilberto di Pierro, o Giba Um, quase caiu da cadeira quando o médico informou que seu filho Bruno, hoje com 11 anos, era mongolóide. Pouco tempo depois formou um grupo e criou o Projeto Down, para divulgar informações sobre o problema e incentivar a pesquisa. "Uma de nossas primeiras lutas foi para que essas pessoas deixassem de ser chamadas de mongolóides, nome que tem uma carga pejorativa", lembra ele. O consenso acabou adotando a expressão síndrome de Down, numa referência ao médico inglês que identificou a deficiência. "O portador da síndrome é como um músico que sabe ler a partitura, obedece aos comandos do maestro, mas toca em compasso diferente dos outros."
Hoje, a situação é diferente de quando Giba Um começou sua cruzada. Há bastante informação sobre o assunto. Sabe-se que a síndrome de Down é a mais frequente e importante causa de retardo mental na infância. Ao contrário do que muitos pensam, não é um problema raro, pois ocorre uma vez a cada 770 nascimentos e é mais comum nas gestações de mulheres com mais de 35 anos. No que diz respeito ao atendimento médico, o ponto fraco é o diagnóstico. Em pesquisa realizada com 200 pediatras da rede pública do Rio, a geneticista e professora Márcia Ribeiro Dâmaso, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, descobriu que muitos se equivocavam ou demoravam a detectar o problema. "O índice de erro é muito alto", estima ela. Como consequência, as crianças demoram a ser submetidas ao tratamento adequado. Esse tempo de espera pode ser a diferença entre o sucesso e o fracasso da terapia. Hoje, contudo, é possível saber nos primeiros meses de gestação se um feto é portador de síndrome de Down. Através da coleta do líquido aminiótico, especialistas analisam se o código genético do embrião indica a presença de alguma síndrome.
No campo da educação, o progresso foi enorme. Assim que a filha Roberta nasceu, Dalva Araújo procurou uma escola em que os portadores de síndrome de Down fossem tratados de maneira adequada. Não encontrou nenhuma. "Eu acreditava que essas pessoas eram alfabetizáveis", recorda. Para provar sua tese, deixou o emprego de secretária, vendeu alguns bens e contratou professores e pedagogos para abrir a própria escola a Colibri, uma instituição pioneira fundada há 20 anos. "As escolas regulares não favorecem a aprendizagem", critica a educadora paulista Nancy Mills Costa. Ela dirige o Centro de Dinâmica de Ensino (Cede), onde desenvolveu um método diferente de alfabetização, que leva em conta as peculiaridades dos alunos Down. "Eles têm dificuldade de articular alguns fonemas. Então procuramos alfabetizá-los de acordo com as palavras que conseguem falar", diz Nancy. Caio Augusto Donato tem 20 anos e em 1993 concluiu a oitava série na Cede. O rapaz toca teclado, faz um curso de teatro e quer seguir a carreira artística. Também está escrevendo um livro dirigido aos jovens que, como ele, são portadores da síndrome. Sua intenção é reivindicar a ampliação do espaço para essas pessoas. "Acho que poderíamos conquistar direitos como o de ter conta bancária e o de dirigir automóveis", reclama.
É certo que a maioria dos portadores da síndrome no Brasil ainda não vive de forma ideal. Longe das famílias de classe média, os deficientes de baixa renda têm que lidar com dificuldades como falta de médicos, hospitais e escolas públicas. Mas o resultado positivo alcançado com o tratamento e a pedagogia adequados mostra que é possível a um Down ter uma vida cada vez mais normal. Terapia no tatame Além das escolas, existem muitas atividades paralelas que auxiliam na integração dos portadores de síndrome de Down. O professor de educação física e judoca carioca Claudio Patriota usa o esporte como forma de integrar as crianças. Além dos benefícios físicos como aumento do volume muscular, coordenação motora e correção de postura, o professor ressalta uma vantagem psicológica para os praticantes do judô. "Da mesma forma que eles tomam um golpe no tatame e se levantam, aprendem que deverão se levantar também na vida, para superar as dificuldades." Patriota ressalta que os alunos chamados normais também ganham com o relacionamento com os portadores da síndrome. "Tudo o que eu ensinava antes na teoria sobre superação das dificuldades, eles aprendem na prática, vendo os colegas superarem seu próprio destino."
Fonte: Isto É - Reportagem Olavo Ruffino - 22 de maio de 1996
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